25 maio 2011

Um bom texto do Juremir Machado

A distinção de Classes encontra-se em todos os lugares?
Acho que este texto do Juremir Machado nos ajuda a pensar um pouco sobre isso:

A gramática acabou?
Adoro uma história contada por um palomense.
Um velho cínico diz a um jovem cheio de boas intenções:
"Se Deus não existe, tudo está perdido".
"Por quê?", limita-se a balbuciar o jovem.
"Por que tudo se torna permitido".
"Então é melhor que Deus exista?"
"Sem dúvida", responde o velho.
O jovem concorda.
"Agora, entre nós", sussurra o velho, o que tu achas: "Deus existe?"
*
O velho cínico encontra novamente o jovem e diz:
"Os homens classificam-se em homens que leram Foucault, Borges e um sábio chinês; homens que acabam de pisar num cocô de cachorro, que já levaram chifres, que sentem vergonha de andar na rua com uma orquídea nas mãos; que amam futebol, que odeiam política e que sabem para que serve o pronome oblíquo átono..."
– Para que serve o pronome oblíquo átono?" – pergunta o jovem deslumbrado.
– Para classificar os homens.
– Só isso?
– E para questões de concursos para servir cafezinho nos tribunais de justiça?
– Mas isso é ainda classificar os homens.
– É o que acabo de dizer.
– O senhor acaba de dizer que a gramática é um sistema de hierarquia social, de separação e classificação dos homens?
– Um modo de distinção.
– Mas não tem uma racionalidade interna nas regras gramaticais?
– Tem. Mas o padrão culto tem tanta racionalidade quanto o popular. Dizer "os livros" ou "os livro" é igualmente eficaz e inteligente.
– Então por que um sistema, o culto, é ensinado nas escolas e o outro não?
– Por que as pessoas pensam que o primeiro é melhor.
– E não é?
– É equivalente.
– Por que elas pensam que é melhor?
– Por que não sabem que não é melhor.
– Então elas são ignorantes?
– São.
– Por que elas acham que o padrão culto é melhor?
– Porque acreditam que o seu uso dá mais expressividade, eficiência e clareza à língua.
– E não dá?
– Não necessariamente.
– Então o padrão culto é apenas o padrão da tal classe dominante?
– Exatamente. É um padrão surgido num momento histórico, validado como tal e e assim repetido. Quem não o usa, sofre preconceito. Ele é o melhor por ser ensinado como o melhor, o que o torna sempre o melhor.
– Mas, mestre, se dois modos são equivalentes, mas um deles é considerado melhor, gerando preconceito para quem usa o outro, ensinar o considerado melhor não significa reproduzir e reforçar o preconceito?
– É um modo de ver.
– Quer dizer que o ensino da gramática reproduz o preconceito e a ignorância da elite, que pensa adotar a melhor variação da língua, mas apenas está adotando aquela que a distingue de outros?
– É um modo de ver.
– Mas, mestre, quando há um preconceito, seja qual for, não se deve lutar contra ele?
– Ou se adaptar a ele.
– O senhor está dizendo que os linguistas, com essa história de língua de prestígio, aquela que permite a ascensão social, estão sendo conformistas, como um estrategista cínico que diz a um homossexual para se comportar como heterossexual num determinado meio ou será discriminado e não conseguirá o emprego desejado?
– Quem sabe...
– Quer dizer que a escola fica enfiando regras arbitrárias na cabeça da gente durante anos somente para que possamos corresponder ao credo ilusório da classe dominante de que a sua maneira de falar é a melhor?
– É o que eu chamo de pragmática linguística.
– E eu de pragmática social.
– As regras são boas, jovem, porque quem pode dizer que elas são boas, o mais forte, assim o faz.
– Mas o faz por não saber que elas não são melhores do que outras.
– Pode ser. Mas sem dominar tais regras, jovem, o sujeito não alcança os seus objetivos.
– Então, mestre, é só uma questão de vaidade, de poder, de dominação e de adaptação para se dar bem?
– E de classificação de homens.
– Não se deveria, mestre, ter a coragem de ir às últimas consequências e defender o fim dessa distinção e desse preconceito? Numa sociedade sem esse preconceito, mestre, não se precisará estudar gramática?
– É importante que as crianças estudem gramática, jovem.
– Por quê?
– Para que se mantenham ocupadas.
– É uma visão funcionalista, mestre.
– Uma visão realista.
– Eu pensava que as regras gramaticais eram...
– Naturais? Criadas por Deus? Uma descoberta dos cientistas como quem descobre a lei da gravidade?
– Não, o resultado de uma, vamos dizer, "seleção natural", o resultado de uma competição ao longo do tempo entre as melhores fórmulas construídas pelos homens e capazes de assegurar mais clareza e eficiência à língua.
– E é assim. Mas algumas regras, nessa permanente competição, embora ultrapassadas por outras melhores, são mantidas como se fossem superiores por apego dos seus usuários. É quando se transformam em regras de distinção. Já perderam a validade distintiva, mas persistem como vestígios de classe.
– A lei da precedência ou da origem.
– Isso mesmo. A regra que diz isto é correto porque era assim antes.
– Então pode ser "a nível de" e "em nível de".
– Por que não?
– Menos e menas?
– Não. Ainda. Alguma ordem precisa ser imposta.
– Se Deus não existe, mestre, tudo é permitido...
– É o que eu digo.
– Mas ele existe?
Postado por Juremir Machado da Silva - 24/05/2011 20:17 - Atualizado em 25/05/2011 10:49

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